segunda-feira, março 21, 2005

A Glória

Somos obrigados a abrir o jogo. As coisas são comoção. Aqui na Seita tínhamos uma estratégia clara: um blog sobre a punheta apanha o universo mais vasto da blogosfera: há os que são do Benfica; há os que são do Estoril; há os que são monárquicos de esquerda; há os que são a favor do choque de valores; há os que gostam de levar porrada enquanto fodem; ele até há quem ache piada ao Nuno da Câmara Pereira; mas todos, mais arte menos arte, mais leveza ou subtilezas à parte, meninas e meninos, arregaçam a carapuça. Ora isto parecia trigo limpo farinha amparo.

Já se vê que o mínimo que almejávamos era a glória. A glória literária, para começo de conversa: umas citações na Capital ao lado de JPP; uma cronicazinha na penúltima página do JL; uma entrevista no Mil Folhas; referências no Expresso; um realce do Paulo, o Querido, na Única; uma edição em papel na Oficina do Livro. De seguida, o reconhecimento público: convites sucessivos para participar em debates na dois; chamadas ao forum da TSF a dar o enquadramento estratégico do tema do dia; uma peça televisiva no programa das gémeas Cardoso; a Quinta das Celebridades. E depois – tudo.

Acontece que as contas nos saíram furadas: temos um leitor e quatro leitoras (e com eles, quer dizer com elas, passámos a trocar mails diários sobre o assunto, em privado, precatados, recatadamente – esgotando o interesse, pois, do post – por redund ânsia); e umas trinta visitas diárias – o que nos coloca no patamar de interesse suscitado por dois blogs sobre a poda da roseira em estufa e ligeiramente abaixo de um outro sobre a importância do uso de palmilhas nas corridas (salvo seja) de cinquenta quilómetros marcha.

Não nos estando reservado o papel de Nicholas Sparks do esgarçanço ou de Lobo Antunes da laustríbia – que se foda: temos mais que fazer; vamos à vida; recomeçaremos em outro lugar; esboçaremos um novo programa; até que a Glória, finalmente, se venha.

Quanto à punheta, claro, só deixaremos de escrevê-la – que a Arte do Segredo não admite pausas se a perfeição é o objectivo último de quem sabe que arremangar a estultícia é dos poucos caminhos que nos levam adeus.

sexta-feira, março 11, 2005

Às vezes

É assim: é o teu corpo que espero quando digo que estou à tua espera: as mãos poisadas muito devagar nas minhas ancas até que a noite deixe de ter peso e a própria sombra se misture ao rumor da água e ao rumor do vento nas folhas do salgueiro; os lábios poisados na pele dos meus ombros; o corpo adormecido enquanto uma estrela risca o céu nocturno e uma pequena lâmina de luz por um instante se acolhe nos teus braços. É o teu corpo que espero. Porque tu és o teu corpo: o modo como acendes um cigarro ou caminhas descalço na tijoleira do terraço; o modo como respiras; o modo como atravessas o pátio e pisas a terra ainda molhada de ser muito cedo no mundo. Por isso te espero: temendo a loucura de saber que o meu corpo é já às vezes, tantas vezes, o teu corpo, e que já nem chego a saber onde terminam as tuas mãos, onde começam as minhas.

Estrangeirinha



Se as mulheres escolhessem a roupa a pensar no gosto dos homens – mas não: as mulheres vestem-se a pensar no gosto das mulheres, das colegas, das amigas, e sobretudo das inimigas de estimação. Se as mulheres escolhessem o calçado a pensar no gosto dos homens – mas não: as mulheres compram aquelas botas em bico avançado e saltos matacões ou de prego caibral a pensar no gosto das mulheres. Se as mulheres escolhessem o regime alimentar a pensar no gosto dos homens – mas não: as mulheres engordam ou emagrecem a pensar no gosto das mulheres, dando-lhe duro na alface, na cenoura e no alho francês. Se Hilary Swank pusesse o gosto das mulheres acima dos interesses da sua carreira, decerto que se recusaria a engordar os cinco quilos exigidos por Clint Eastwood (se a realização de Million dollar baby estivesse a cargo duma senhora, claro que Hillary teria que sujeitar-se a um prévio plano dietético até se lhe contarem as costelas uma a uma sob uma grossa camisola de lã). Eu disse «engordar»? Não: Hillary Swank usufruiu duma ligeira massa muscular, arredondou onde devia, potenciou, ganhou estrangeirinha. E, sim, ficou boa como o milho – contra os pareceres de todas as mulheres que até agora se pronunciaram sobre o assunto. Aquele par de mamas, esforçadamente contido por um vestido que parece que a qualquer momento vai explodir pelas costuras todas, é de massacre. Ganhou um Óscar. Comeu por isso. Eu também lhe dava o meu.

quinta-feira, março 10, 2005

Delgado

Fez muita espécie a muita gente o elogio de Agustina a Santana Lopes: que ele era «um homem comum». Ora: são exactamente os homens comuns, e as mulheres comuns, que fazem andar o mundo nos seus eixos: as donas de casa, o electricista, o técnico superior de segunda classe, o medidor-orçamentista, o presidente de Câmara dedicado e intranquilo, o obscuro escrivão que passa os dias enrolado em papelada e um bocado de noite na gaiola, a mulher a dias, o estafeta, o secretário de Estado com sentido de serviço público, posto que cinzentão e avesso à primeira página e ao retrato na revista do enconanço – são eles, são elas, anónimos as mais das vezes, que fazem o mundo avançar – eles, os homens comuns, elas, as mulheres comuns. E depois há os génios – John Nash, Mourinho, Joyce, Beckham, Einstein, Luís Delgado, Bush, Louçã, Manuel Monteiro... Se o mundo dependesse deles, dos génios, estávamos quilhados – e o mais certo era que amanhã de manhã não houvesse pão à venda na padaria do meu bairro.

quarta-feira, março 09, 2005

Um livro

Entro na Bertrand e dou de caras com um livro intitulado «Os 500 Mais Famosos Buracos do Mundo».

Foda-se - estás em todo o lado...

terça-feira, março 08, 2005

A temperança

Na segóvia, na pívia, do que se trata é de responder sem interrogações ou perplexidades a uma pulsão hormonal, a estímulos básicos, como se o desejo não fosse mais que um sistema de vasos comunicantes entre um par de mamas e a piroca. Usando como metáfora a 2ª lei da termodinâmica, é como se a pívia levasse o desejo a estados crescentes de entropia e desorganização.

Quando se fala na Arte do Segredo, na suprema Arte da laustríbia, o que está em causa é uma espécie de regresso à ordem: a um corpo que aos poucos se desprende e se liberta do seu peso, do que na sua materialidade não é ainda matéria volátil. Por isso se poderá dizer que a pívia está para o esgarçanço subtil como o Diário de Um Mago, de Paulo Coelho, está para a Cartuxa de Parma. (Certo que há muito mais gente a ler o Paulo Coelho que o Stendhal – mas é por estas e por outras que o mundo está como está.)

segunda-feira, março 07, 2005

Sem perdas

Sem as partidas
não haveria regressos.

Sem perdas
o desejo
mineraliza.

Bater no ceguinho

Hoje, logo de manhã, toquei uma punheta automática. Daquelas de bater no ceguinho, de esmoucar o piloto, de esgalhar o pessegueiro. Nenhum esforço intelectual, nenhum exercício literário me permitirão justificá-la à luz dos conceitos da suprema Arte da laustríbia. Foi só uma punheta, ponto final. Envergonha-me, sim. É um bocadinho degradante, depreciativo - quase roça a infâmia. Mas - oh, tenho que reconhecê-lo - soube-me bem, soube-me de primeira - e é como se tivesse que ser aquilo que efectivamente foi. Enfim, mais coisa menos coisa - é a vida...

sábado, março 05, 2005

Culinária

De acordo com os resultados finais dum inquérito realizado em Espanha, a qualidade que nuestras hermanas mais apreciam num homem é... saber cozinhar. O gajo pode ser filho da puta - desde que se desenrasque no fogão e no acepipe; o artolas pode chegar a casa a desoras - desde que maneje a escumadeira, capriche num molho de tamarindo e distinga o ponto de quebrar do ponto de pérola. Ora isto dá uma tusa de campeão: eu, por exemplo, enquanto pessoa, enquanto ser humano, certo é que não mereço a água que bebo; mas de roda dos tachos sou um autêntico Marc Le Ouedec.

Não há-de passar desta noite que não corra a Badajoz, que as fodo...

Escrita feminina (3)

Escreveu algures o Camilo que o Diabo demonstrava um bom gosto assinalável ao escolher as moçoilas mais bonitas do Barroso (ou seriam minhotas?) para lhes entrar no corpo e lhes revirar os olhos quando se juntavam nas festividades ali por imediações da ponte de Cavez, parece. Pois o Diabo, por um lado, e a promessa do paraíso celestial, por outro, andaram muito a par, de mãos dadas, durante um bom arco de séculos; durante, pelo menos, toda a Idade Média – que, como é sabido, vai do século V (com o estertor do império romano) aos primeiros anos do século XXI (onde em Bragança as características mais distintivas desse tempo medieval se manifestavam ainda) – as mulheres foram sempre muito sujeitas ora ao êxtase místico e à mediação com os anjos, ora ao laço armadilhado do demo que as remetia, em vida, ao alume dos infernos.

Os homens, esses, devido a mandarem eles de portas afora, e andarem portanto em permanência distraídos na má-e-boa-vai-ela do mundo, estiveram sempre menos propensos ao contacto tanto com o divino como com o báratro de Lúcifer, apegados mais, portanto, à realidade comezinha das coisas terrenas.

Isabel Allegro de Magalhães, na sua tese sobre as características e especificidades da escrita feminina (O Tempo das Mulheres, INCM, 1987), anda um bocadinho às voltas com esta realidade. Sobretudo quando, para melhor procurar compreender o discurso narrativo de autoras do século XX, arrecua na Idade Média à época das cantigas de amigo.

De acordo com Isabel Allegro Magalhães, as mulheres vivem num tempo parado, mas feito simultaneamente da memória do tempo que passou e do sonho do tempo que se há-de vir; e os homens vivem num tempo presente, no tempo que flui. As mulheres, portanto, são as que ficam, as que esperam (mas também as mediadoras – com o passado, com o futuro, com o sagrado, com o divino); os homens são os que correm o mundo e vivem o tempo que flui, agarrados à terra. Neste entendimento, a escrita feminina é diferente da escrita masculina, porque o tempo feminino é diferente do tempo masculino: e é assim que na ficção feminina se pode falar de um tempo parado, e na ficção masculina de um tempo fluente.

Ora, isto explicará as diferenças existentes entre a ficção escrita pelos homens e a ficção escrita pelas mulheres, mas explica sobretudo as características distintivas da relação que os homens e as mulheres, ao longo de toda a looonga Idade Média, estabeleceram com o sexo e a masturbação. E nisso, oh, as mulheres nos levaram a palma quase sempre – mais subtis, mais dadas ao ardil, mais conscientes em permanência do que é ter um corpo e de que modo o prazer se pode preservar e resguardar do quotidiano prosaico.

Compreende-se assim que os homens se dessem sobretudo à foda, na foda iniciando e fechando o círculo do desejo; e que as mulheres, na sua imensa sageza, se entregassem preferencialmente (quer dizer: acrescidamente) à masturbação, não desconhecendo que o prazer e o desejo existem muito, ou sobretudo, numa dimensão que, começando no corpo, apenas se complementa e completa num plano divino e espiritual.

Eis pois explicada a razão de serem elas tão propensas ao diabo no corpo, tão familiares no contacto com os anjos, tão próximas sempre da visão claramente vista do paraíso e de tudo, enfim, que tem a ver com as profundezas e o etéreo: porque esgarçavam durinho, porque arremangavam a estultícia com dedicação, método, entusiasmo - e um fervor, vamos lá, religioso.

O que tem a ver o cu com a feira de Castro? Tem. Imagine-se o ambiente sócio-cultural da Idade Média: mulher que se soubesse que se masturbava, que escandia o clavicórdio - de imediato a remeteriam ao degredo, à lapidação ou à fogueira depuradora da praça; mulher que escandisse o clavicórdio - sabia-se suja, sabia-se reles, animalesca, pecadora em último grau; por isso viveu, durante todo esse tempo, num tempo dual, um tempo em que a ignomínia e o êxtase, o prazer sublime e a vergonha - andavam a par; e por isso subiam aos céus e de caminho conferenciavam e segredavam com anjinhos e querubins quando tão avassaladoramente e repetidamente se vinham; ou então desciam aos infernos, na suspeita de que um prazer assim, tão intenso, tão encarniçado - só poderia ser obra do demo em favor da perdição e da condenação das almas.

Isabel Allegro de Magalhães explica-nos tudo isto tintim por tintim servindo-se para o efeito da famosa Cantiga de Santa Maria. Eu resumo, alterando apenas um nada: o cavaleiro está cá fora à espera da freira, de dente afiado, espumando pela boca e coçando os tomates; mas ela conhece já a irrisão da foda, e intuiu já, no exercício da masturbação, essa dimensão superior, espiritual, do prazer; e está ela a escandir o clavicórdio, portanto, e de tal guisa que o prazer e o plano divino se confundem por um instante, acreditando a freira, então, que é Santa Maria (e não o masturbo) quem decide por ela ao decidir-se que não seguirá o cavaleiro esfaimado.

De acordo com Afonso X, a freira terá mandado dizer ao panhonha:

«Mal quisera falir
en leixar Deus por ome terreal.»

Em boa verdade, o que ela queria significar era qualquer coisa mais do género: «Pois mui parva seria eu/ en leixar o masturbo por foda terrena.»

E deste modo se vê como as discussões sobre a escrita feminina, e sobre o que escrevem os homens e escrevem as mulheres, e sobre a filiação dessas diferenças - é assim das coisas mais intelectualmente estimulantes a que podemos entregar-nos (além, claro, da punheta)...


[Nota: O Tempo das Mulheres, de Isabel Allegro Magalhães, é uma obra não apenas honesta - a todos os títulos recomendável.]

quinta-feira, março 03, 2005

Escrita feminina (2)

Maria Teresa Horta, em crítica no DN, confessa a grande dificuldade que teve em ler até ao fim o mais recente romance de Lola Beccaria (Uma Mulher Nua, Ed. Teorema). E dá-lhe uma estrela, numa escala de uma a cinco estrelas possíveis. Já sabemos do que a casa gasta: o livro deve ser bom. Porque à Maria Teresa o menos que a preocupa na literatura é a literatura propriamente dita. No caso em apreço, Maria Teresa até começa por realçar a «narrativa ávida e ágil», mas, oh, o problema é que no livro de Lola Beccaria «o feminino se afirma através de parâmetros evidentemente masculinos». E isso é proibido. Pois para Maria Teresa a legitimidade do discurso de uma personagem depende de previamente sabermos se o livro foi escrito por um homem ou por uma mulher. Se, é um supor, for escrito por D. H. Lawrence, Lady Chatterly poderá dizer: «Que beleza! A beleza inefável daquelas nádegas quentes e vivas que ela tocava» - porque isso é literatura; mas se for escrito por uma mulher (Lola Beccaria, é outro supor), Martina ficará impedida de dizer: «Aquele nobre brutamontes era imponente. Brioso, elegante, altaneiro» - porque isso não passará de um discurso sexista, narcisista, ridículo. Porquê? Porque Maria Teresa Horta, treslendo Anais Nin, entende que uma mulher não poderá deixar de guardar a «linguagem de uma mulher»; e que uma mulher não pode descrever uma relação sexual se o não fizer «sob o ponto de vista feminino».

Tantos anos de feminismo, tanto soutien queimado em piras ruidosas, tantas Novas Cartas Portuguesas, tanto novelo, tanta roca de fiar - e o fenómeno dá nisto: de acordo com Maria Teresa Horta, mais que a sintaxe coxeante ou a prosa maçada, mais que a inexistência de um estilo ou de um módico de força narrrativa, ou de originalidade, ou de capacidade efabulatória - o que destrói a escrita das mulheres é... «o erotismo sexista».

Escrita feminina (1)

Uma mulher escreve um romance. Os protagonistas são um cão e uma cadela. Vai no capítulo segundo, e a narrativa parece correr-lhe fluida, ávida, ágil. E é então que dá início ao parágrafo onde se propõe descrever uma cena em que Piloto, o cão, lho arruma na bicha a Peninha, a cadela. A romancista não desconhece as lições de Maria Teresa Horta, e sabe que a uma mulher está vedado escrever sobre sexo se o não fizer «sob o ponto de vista feminino». Ora isto é um ferro... Escreve, apaga. Recomeça. Emenda. Apaga de novo. A Autora quer permanecer fiel ao cânone de Maria Teresa. Mas vai colocar-se sob o ponto de vista de quem? De Peninha, a cadela com cio? Foda-se...