sábado, março 05, 2005

Escrita feminina (3)

Escreveu algures o Camilo que o Diabo demonstrava um bom gosto assinalável ao escolher as moçoilas mais bonitas do Barroso (ou seriam minhotas?) para lhes entrar no corpo e lhes revirar os olhos quando se juntavam nas festividades ali por imediações da ponte de Cavez, parece. Pois o Diabo, por um lado, e a promessa do paraíso celestial, por outro, andaram muito a par, de mãos dadas, durante um bom arco de séculos; durante, pelo menos, toda a Idade Média – que, como é sabido, vai do século V (com o estertor do império romano) aos primeiros anos do século XXI (onde em Bragança as características mais distintivas desse tempo medieval se manifestavam ainda) – as mulheres foram sempre muito sujeitas ora ao êxtase místico e à mediação com os anjos, ora ao laço armadilhado do demo que as remetia, em vida, ao alume dos infernos.

Os homens, esses, devido a mandarem eles de portas afora, e andarem portanto em permanência distraídos na má-e-boa-vai-ela do mundo, estiveram sempre menos propensos ao contacto tanto com o divino como com o báratro de Lúcifer, apegados mais, portanto, à realidade comezinha das coisas terrenas.

Isabel Allegro de Magalhães, na sua tese sobre as características e especificidades da escrita feminina (O Tempo das Mulheres, INCM, 1987), anda um bocadinho às voltas com esta realidade. Sobretudo quando, para melhor procurar compreender o discurso narrativo de autoras do século XX, arrecua na Idade Média à época das cantigas de amigo.

De acordo com Isabel Allegro Magalhães, as mulheres vivem num tempo parado, mas feito simultaneamente da memória do tempo que passou e do sonho do tempo que se há-de vir; e os homens vivem num tempo presente, no tempo que flui. As mulheres, portanto, são as que ficam, as que esperam (mas também as mediadoras – com o passado, com o futuro, com o sagrado, com o divino); os homens são os que correm o mundo e vivem o tempo que flui, agarrados à terra. Neste entendimento, a escrita feminina é diferente da escrita masculina, porque o tempo feminino é diferente do tempo masculino: e é assim que na ficção feminina se pode falar de um tempo parado, e na ficção masculina de um tempo fluente.

Ora, isto explicará as diferenças existentes entre a ficção escrita pelos homens e a ficção escrita pelas mulheres, mas explica sobretudo as características distintivas da relação que os homens e as mulheres, ao longo de toda a looonga Idade Média, estabeleceram com o sexo e a masturbação. E nisso, oh, as mulheres nos levaram a palma quase sempre – mais subtis, mais dadas ao ardil, mais conscientes em permanência do que é ter um corpo e de que modo o prazer se pode preservar e resguardar do quotidiano prosaico.

Compreende-se assim que os homens se dessem sobretudo à foda, na foda iniciando e fechando o círculo do desejo; e que as mulheres, na sua imensa sageza, se entregassem preferencialmente (quer dizer: acrescidamente) à masturbação, não desconhecendo que o prazer e o desejo existem muito, ou sobretudo, numa dimensão que, começando no corpo, apenas se complementa e completa num plano divino e espiritual.

Eis pois explicada a razão de serem elas tão propensas ao diabo no corpo, tão familiares no contacto com os anjos, tão próximas sempre da visão claramente vista do paraíso e de tudo, enfim, que tem a ver com as profundezas e o etéreo: porque esgarçavam durinho, porque arremangavam a estultícia com dedicação, método, entusiasmo - e um fervor, vamos lá, religioso.

O que tem a ver o cu com a feira de Castro? Tem. Imagine-se o ambiente sócio-cultural da Idade Média: mulher que se soubesse que se masturbava, que escandia o clavicórdio - de imediato a remeteriam ao degredo, à lapidação ou à fogueira depuradora da praça; mulher que escandisse o clavicórdio - sabia-se suja, sabia-se reles, animalesca, pecadora em último grau; por isso viveu, durante todo esse tempo, num tempo dual, um tempo em que a ignomínia e o êxtase, o prazer sublime e a vergonha - andavam a par; e por isso subiam aos céus e de caminho conferenciavam e segredavam com anjinhos e querubins quando tão avassaladoramente e repetidamente se vinham; ou então desciam aos infernos, na suspeita de que um prazer assim, tão intenso, tão encarniçado - só poderia ser obra do demo em favor da perdição e da condenação das almas.

Isabel Allegro de Magalhães explica-nos tudo isto tintim por tintim servindo-se para o efeito da famosa Cantiga de Santa Maria. Eu resumo, alterando apenas um nada: o cavaleiro está cá fora à espera da freira, de dente afiado, espumando pela boca e coçando os tomates; mas ela conhece já a irrisão da foda, e intuiu já, no exercício da masturbação, essa dimensão superior, espiritual, do prazer; e está ela a escandir o clavicórdio, portanto, e de tal guisa que o prazer e o plano divino se confundem por um instante, acreditando a freira, então, que é Santa Maria (e não o masturbo) quem decide por ela ao decidir-se que não seguirá o cavaleiro esfaimado.

De acordo com Afonso X, a freira terá mandado dizer ao panhonha:

«Mal quisera falir
en leixar Deus por ome terreal.»

Em boa verdade, o que ela queria significar era qualquer coisa mais do género: «Pois mui parva seria eu/ en leixar o masturbo por foda terrena.»

E deste modo se vê como as discussões sobre a escrita feminina, e sobre o que escrevem os homens e escrevem as mulheres, e sobre a filiação dessas diferenças - é assim das coisas mais intelectualmente estimulantes a que podemos entregar-nos (além, claro, da punheta)...


[Nota: O Tempo das Mulheres, de Isabel Allegro Magalhães, é uma obra não apenas honesta - a todos os títulos recomendável.]