terça-feira, fevereiro 15, 2005

Uma crónica desportiva, para variar


Franziska Van Almsick, preparando-se para uma prova de natação nos mundiais

Sim, gosto muito de desporto. Mas não compreendo as regras. Irrita-me que as regras sejam aplicadas como se estivéssemos na idade da pedra lascada. Ainda recentemente, em La Romareda, Ronaldinho Gaúcho faz uma jogada genial e passa a Eto’o que passa a Giuly que remata para o golo. Parecia dança clássica. Arte pura. Pois os gaioleiros do Saragoça começaram a disparatar a propósito dum putativo fora de jogo e outras minudências do género, como se o árbitro e o livro de códigos da FIFA fossem mais importantes que uma dança do Ronaldinho.

Geralmente não fixo o resultado dum jogo. Não me interessa. Porque me parece medieval esta ideia de que a equipa vencedora é a que marca mais golos – como se o importante não fosse a arte dos jogadores, a elegância com que fintam o adversário, o modo como fazem um passe na diagonal. Claro que não recordo o resultado do jogo do Brasil com a Argentina nos oitavos de final do mundial de 1990: mas não posso esquecer o bailado de Maradona nem o modo como ofereceu o golo a Cannigia. Sim, isso interessa-me. Muito mais, confesso, do que saber se é verdade ou não que o massagista argentino andava muito afeito junto dos brasileiros a dar-lhes de beber da água onde macerara e diluira um Rohypnol, deixando apática a defesa canarinha e subvertendo assim a verdade desportiva. A meu ver, a verdade desportiva daquele jogo foi o Maradona ser um génio e ter jogado como se dançasse sem tocar o chão.

Agora, por exemplo, anda tudo muito preocupado porque parece que os atletas do meio fundo se metem na desoxi-metiltestosterona. Ora eu estou-me positivamente cagando para a desoxi-metiltestosterona, para a tetrahidrogestrinona e para o Rohypnol: porque podem dar mais velocidade aos atletas, ou atarantar o adversário – mas isso é o menos se o que estiver em jogo for – como deve ser – não tanto o número de golos que se marcam, não tanto os segundos que um cronómetro regista desde o tiro de partida até à meta desenhada no chão – e sim a elegância, a poesia, o equilíbrio, a estética do movimento. O que são os sete minutos e tal a que a Rosa Mota deixou a desgraçada da Soya Ivanova, nos mundiais de 1987, comparados com o modo como ela deslizava naquela tarde muito quente a confundir as aves suspensas dos fios eléctricos das avenidas de Roma?

Citius, altius, fortius – ora aí está um lema interessante no paleolítico, em que um artista privilegiava correr mais depressa do que uma fera esfaimada ou saltar mais alto, agarrando-se ao ramo duma araucária, do que o carnívero que o perseguia com os incisivos afiados; ora aí está um lema que tem tanto a ver com o desporto como a punheta adolescente (automática, esgalhada à pressa para suprir o impulso da hormona do acne) tem a ver com a suprema Arte da laustríbia.

A Franziska Van Almsick, por exemplo: já a viram nadar? Já repararam bem no modo como um dos braços se ergue numa aparição simultânea à muito vagarosa rotação da cabeça e todo o corpo, num mesmo impulso, respira debaixo da água? Oh, sim, é verdade que a mocinha bateu sucessivos recordes mundiais. Mas quando ela nada (quando ela tudo, meu deus...) algum dos leitores achará que a nossa preocupação de pessoas civilizadas deverá ser a de saber em quantos segundos faz duas piscinas?