The Gates
Christo e Jeanne-Claude invadiram o Central Park com as suas portas. E o povão começou a tremer: que aquilo é uma merda, que se aquilo é arte vou-ali-já-venho. Não seria de esperar outra coisa. Porque as obras de Christo e Jeanne-Claude nos desarmam; porque as suas obras transfiguram e subvertem. E isso é aterrador. Habituados aos códigos, às normas, à fórmula, à mnemónica – perdemos o pé na limpidez do sobressalto. Santos Passos ironiza; Filipe Moura, vigilante, concede que a exposição é «engraçadinha» mas que os sujeitos deviam era dedicar-se a amolar tesouras; outros deixam nas caixas de comentários uns bonecos sorridentes a abanar com a dentadura, muito felizes todos por se saberem acompanhados nesta sobranceira protecção da paz doméstica e do coração contratual.
As razões porque todos eles detestam as intervenções de Christo e de Jeanne-Claude não são diferentes das que nos impedem de falar publicamente no esgarçanço: porque a punheta subverte os discursos sobre o amor e o desejo em que nos formataram. Do mesmo modo que muitos parisienses só viram verdadeiramente a Pont Neuf quando ela foi ocultada por um pano, assim muitos de nós só compreendemos o nosso corpo quando ousamos tapá-lo, esquecendo o que nos ensinaram, e o destapamos de novo. Mas isso é fodido. Como é fodido por um instante olharmos o Reischtag e vermos para além dele; e sabermos que quem incendiou o Reischtag nesse dia distante de Fevereiro de 1933 era feito da mesma matéria de que somos feitos – e que isso, num certo sentido, nos faz cúmplices do crime da intolerância e da infâmia. Como é fodido, atravessando porta atrás de porta atrás de porta num parque gigantesco, por entre as árvores, por um instante suspeitarmos que a nossa vida tantas vezes se reduz a isso mesmo, diariamente, caminhando em fila ordenada, porta atrás de porta, deambulando pelas ruas desenhadas num mapa de que perdemos a chave.
Por isso a arte que nos interessa, a que estamos disponíveis para aceitar e tolerar, a que não nos interroga, a que não nos confronta com os nossos fantasmas e com a nossa aflição, é a das flores de laranjeira pintadas a óleo sobre tela, ou a das naturezas mortas com frutos, ou, dum modo geral, a arte decorativa que nos deixa de bem com o mundo e com a cor da carpete da sala de estar.
Christo e Jeanne-Claude mais não procuram que dar-nos a possibilidade de um outro olhar. De olhar de novo. E isso não estamos disponíveis para aceitar.
[A ver, sobre o projecto (via Luís Ene)]
As razões porque todos eles detestam as intervenções de Christo e de Jeanne-Claude não são diferentes das que nos impedem de falar publicamente no esgarçanço: porque a punheta subverte os discursos sobre o amor e o desejo em que nos formataram. Do mesmo modo que muitos parisienses só viram verdadeiramente a Pont Neuf quando ela foi ocultada por um pano, assim muitos de nós só compreendemos o nosso corpo quando ousamos tapá-lo, esquecendo o que nos ensinaram, e o destapamos de novo. Mas isso é fodido. Como é fodido por um instante olharmos o Reischtag e vermos para além dele; e sabermos que quem incendiou o Reischtag nesse dia distante de Fevereiro de 1933 era feito da mesma matéria de que somos feitos – e que isso, num certo sentido, nos faz cúmplices do crime da intolerância e da infâmia. Como é fodido, atravessando porta atrás de porta atrás de porta num parque gigantesco, por entre as árvores, por um instante suspeitarmos que a nossa vida tantas vezes se reduz a isso mesmo, diariamente, caminhando em fila ordenada, porta atrás de porta, deambulando pelas ruas desenhadas num mapa de que perdemos a chave.
Por isso a arte que nos interessa, a que estamos disponíveis para aceitar e tolerar, a que não nos interroga, a que não nos confronta com os nossos fantasmas e com a nossa aflição, é a das flores de laranjeira pintadas a óleo sobre tela, ou a das naturezas mortas com frutos, ou, dum modo geral, a arte decorativa que nos deixa de bem com o mundo e com a cor da carpete da sala de estar.
Christo e Jeanne-Claude mais não procuram que dar-nos a possibilidade de um outro olhar. De olhar de novo. E isso não estamos disponíveis para aceitar.
[A ver, sobre o projecto (via Luís Ene)]
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