sexta-feira, janeiro 14, 2005

As imagens

As assistentes dos concursos televisivos – sim, aquelas meninas que ficam encostadas a um figorífico com uma das pernas ligeiramente à frente da outra enquanto o apresentador ou uma voz off gabam o sistema cooler da maquineta – têm um tempo de treino, digamos, consentâneo com a complexidade e a responsabilidade das funções que são chamadas a exercer: seis dias, em regra, desde o contrato até à emissão de estreia transmitida em diferido (nos directos suam muito – só mais tarde). No primeiro dia aprendem a percorrer de saltos altos, sem requebros excessivos, o espaço de dois metros e vinte que separa um electrodoméstico duma bicicleta de montanha; no segundo e no terceiro aprendem as técnicas de marcação em palco e os rudimentos da arte da representação de dramas extáticos (geralmente, duas páginas do Marinheiro de Fernando Pessoa é quanto basta); no quarto (oh, no quarto!) aprendem a calcular os ângulos recomendados de torsão do tronco, de exposição do busto e de levantamento de nádegas; os dois últimos dias são destinados à composição do chamado riso-careta (o riso-careta é fundamental: as meninas assistentes, durante as emissões, não podem por um único instante deixar de sorrir).

Por acasos que seria ocioso aqui pormenorizar, um dia (uma noite, aliás) dei por mim na retoiça com uma destas mocinhas: um desastre: eu a despi-la (aquilo devia ser um modelo Fátima Lopes disfarçado: muito pano, sim, mas a gente desapertava-lhe um botão da camisa e a moçoila ficava, incredibili dictu, automaticamente nua do pescoço aos tornozelos) – eu a despi-la, dizia, e ela com o sorrisinho de puta sem modulações; eu a deitá-la na cama, eu a encabá-la, eu ali em movimentos ridículos de sobe-e-desce a inventar frases e a copiar tiradas dos filmes dos anos cinquenta – e ela, foda-se, com aquele sorrisinho de plantão...

Jurei pa nunca mais...

Pois ontem dou por mim a esgaramantear uma laustríbia à mor da assistente do sorrisinho careta filho da puta... É verdade... Concentrado no mister, de olhos fechados, via-lhe tudo menos o sorriso acoplado: ele era o pernão descomunal, ele era o volume ostensivo das mamas, a curva demorada dos ombros, o pescoço, os tornozelos ligeiramente grossos, o pezinho quase delicado; tudo menos o rosto e o sorriso paneleiro aprendido no bacharelato de actriz-assistente...

António Damásio (ver O Erro de Descartes) explica que todas as memórias nos chegam por imagens – mesmo a memória das palavras; e que, devido à nossa incapacidade de armazenamento de informação, as imagens não são guardadas em cópias fiéis ao original – mas desfocadas, alteradas, compostas, misturadas, sobrepostas. Isto explica o fenómeno conhecido de todos os cultores da suprema Arte da Fénix – e que de resto justifica este esforço de salvação pelo continuado aperfeiçoamento da Arte: boa parte das mulheres são bem melhores para o esgarçanço (que vive de memórias desfocadas) do que páfoda (que nos confronta com a realidade sem apelo).

Na verdade, aquelas mamas, a coxa quase pleonástica, a nádega firme no seu posto de atalaia – não eram da menina dos concursos: mas uma insuficiência nossa no armazenamento de informação foi desse modo que mas trouxe – desligadas do sorrisinho que atrofia os músculos das assistentes e as deixa assim em estado pré-comatoso...