segunda-feira, fevereiro 28, 2005

A sedução

A sedução. O segredo que nenhum rumor poderá sobressaltar. Nem o vento nas folhas do lódão. Nem a água nas raízes do ácer. O modo como num preciso instante os nossos olhos se olham e se reconhecem. (Depois, enfim, mais cama menos cama que se foda.)

sábado, fevereiro 26, 2005

Rumor

«Socar o moleque» - que deliciosa expressão. Socar o moleque remete para a ideia de desejo que se deseja com a naturalidade de regressarem as aves aos seus refúgios, pelo fim da tarde, vindas dos açudes. Há na expressão qualquer coisa de lúdico, leve, jovial. Quem soqueia o moleque não arregaça a carapuça, não abre uma gaiva, não estiva o cordame, não mistura ao remorso a evidência dum corpo que respira: apenas traz às suas mãos esse rumor quase subterrâneo das nascentes da água; e uma espécie de felicidade tão jovem, tão recente, que não tem ainda nome nos livros de poemas.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

No centro do teu corpo

para o concurso em curso na Voz em Fuga


No centro do teu corpo é que poisava
o lume evaporado à terra arável,
a luz dos meteoros ou a lava
azul, incandescente, imponderável.

No centro do teu corpo, magnética,
a água do desejo incandescia.
Os dois éramos um: a aritmética
mudava as suas regras e eu bebia.

Aí era a nascente. Aí demora
a pele o ar que a custo respirava
enquanto não gritasses: é agora!

E então uma galáxia deflagrava
no centro do teu corpo que fundia
o mel, a cona, o pão, a poesia.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Mais política

As generalizações são como as sondagens: valem o que valem. Ora acontece que as sondagens parecem valer um bocadinho mais do que pensava quem se preparava já para meter em Tribunal as Empresas da especialidade à mor dos seus putativos erros grosseiros; Empresas que afinal viriam a acertar em cheio nas previsões. Ora, aqui na Fénix, numa altura em que os sociais democratas levam pancada a torto e à direita, não ficávamos de bem com a nossa consciência se não déssemos um passo em frente em defesa das laranjinhas. As meninas do PSD (sim, as generalizações valem o que valem) são as mais interessantes do universo feminino. E quem o garante está aqui, que durante os dois últimos anos se meteu ao estudo do fenómeno em rigoroso e esforçado trabalho de campo. Com afinco, acrescente-se, o que não é dizer pouco.

Certo que mal iria o mundo se ficássemos à espera que fossem elas a mover os eixos em que ele, o mundo, se sustenta: não se pode dizer, por exemplo, que a solidariedade lhes seja um valor muito caro (nisso ninguém leva a palma às comunistas e às meninas do CDS) ou que elejam como especial prioridade a luta contra as desigualdades sociais; embora se comovam com a pobreza, e achem que alguém devia tratar dos pobres e dar-lhes de comer e isso...

Em contrapartida, estudam; ao invés de lutarem contra o sistema e distribuírem panfletos na Faculdade de Letras, esmeram-se em tirar um curso à Universidade; e não andam em comício a exigir emprego para os recém licenciados: chegam à empresa e falam directamente com o tio. Isto parece pouco, contado deste modo prosaico – mas o país avançava, sim, e acabavam-se as discussões sobre o pacto de estabilidade. Porque há nelas, digamos, uma espécie de inata capacidade de gerir, de mandar. E do que a gente precisa é de quem mande; que quem-manda-manda-bem. O resto são inconsequentes, posto que espalhafatosas, acções de rua.

Depois – são desarmantes. Na praia, por exemplo, vi uma jotinha chegar tarde para o almoço do grupo (as jotinhas acham que a pontualidade é coisa de pobre) e perguntar à amiga do PS, com dois pneus (esta) salientes abaixo do umbigo e atarefada com a feijoada de buzinas: «não me diga que hoje não há salada tropical, querida». E só depois se sentou, boa como o milho, descendo por instantes, no movimento displicente, o decote rasgado.

Ora isto é ter estrangeirinha. Como é ter estrangeirinha, numa discussão sobre o Chomsky em que uma militante do Bloco de Esquerda perorava a respeito do imperialismo americano e assegurava que o capitalismo neoliberal era o pior dos inimigos do povo – entrar assim na conversa: «oh, também adoro o Chomsky. Estavam a falar do problema das gramáticas sensíveis ao contexto? É que ando a ler O Conhecimento da Língua – sua Natureza, Origem e Uso. Não sei se estão de acordo, mas como revolucionário acho que não há melhor linguista...»

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Ressaca

A campanha eleitoral já foi assim-assim; o resultado final, às oito da noite de domingo, foi um pesadelo. É que as jotinhas sociais-democratas não são particularmente dadas ao comité e à discussão de propostas, ao organigrama, ao núcleo, à plataforma, ao trabalho de base; mais à glória, à euforia, ao êxtase, ao glamour. Ora, antevendo-se já o pior, nas últimas semanas as meninas começaram a desertar, a inventar compromissos, a tirar o meio corpinho e os braços levantados do tejadilho do Volvo, a enunciar desculpas com umas cadeiras lá na faculdade. E é assim: durante pelos menos três anos e onze meses, com a memória destes sub 30%, vai ser o bom e o bonito para as convencer ao comício, à caravana, à militância – e à retoiça...

Ora, se dúvidas houvesse, fica agora claro que o senhor Presidente da República introduziu distorções ao sistema político que impedem a garantia de normalidade de funcionamento duma democracia adulta. Uma democracia onde as jotinhas cor de laranja rejubilam, exaltam, exultam – e nos dão alento, e nos fazem acreditar no país e na punheta.

Adenda

(Sim, claro, as jovens do Bloco andam com o grelo aos pulos e fodem com vício: mas aquele vício militante em que se confundem a pinocada e a solidariedade de classe; em que se perde uma noite de cama com menos entusiasmo que um concerto de Jorge Palma e dois charrocos. E depois há o caso terrível de a meio duma discussão sobre A Cartuxa de Parma nos arriscarmos a ouvir um «tudo muito certo, mas que dizer então da Eduarda Dionísio?». Já se retira que para o esgarçanço, para o exercício da subtil Arte do Segredo – zero!)

terça-feira, fevereiro 22, 2005

À mão

Às leitoras mais impacientes com a intermitência das actualizações, solicitamos um módico de compreensão: ao contrário do que acontece nos restantes blogs (oh, sim, o Dashboard, a tecnologia de ponta...), aqui cada um dos textos é laboriosamente esgalhado à mão...

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

A Literatura

Com a memória da tua pele eu corria contra a Adversidade
eu atravessava a estepe e o deserto
recolhia a última luz dos troncos das bétulas
escrevia essa luz nas páginas dos Livros
e nessas páginas o teu rosto haveria de resplandecer
inumeramente
como se por um instante
a Literatura e o desejo
se pudessem confundir

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

The Gates

Christo e Jeanne-Claude invadiram o Central Park com as suas portas. E o povão começou a tremer: que aquilo é uma merda, que se aquilo é arte vou-ali-já-venho. Não seria de esperar outra coisa. Porque as obras de Christo e Jeanne-Claude nos desarmam; porque as suas obras transfiguram e subvertem. E isso é aterrador. Habituados aos códigos, às normas, à fórmula, à mnemónica – perdemos o pé na limpidez do sobressalto. Santos Passos ironiza; Filipe Moura, vigilante, concede que a exposição é «engraçadinha» mas que os sujeitos deviam era dedicar-se a amolar tesouras; outros deixam nas caixas de comentários uns bonecos sorridentes a abanar com a dentadura, muito felizes todos por se saberem acompanhados nesta sobranceira protecção da paz doméstica e do coração contratual.

As razões porque todos eles detestam as intervenções de Christo e de Jeanne-Claude não são diferentes das que nos impedem de falar publicamente no esgarçanço: porque a punheta subverte os discursos sobre o amor e o desejo em que nos formataram. Do mesmo modo que muitos parisienses só viram verdadeiramente a Pont Neuf quando ela foi ocultada por um pano, assim muitos de nós só compreendemos o nosso corpo quando ousamos tapá-lo, esquecendo o que nos ensinaram, e o destapamos de novo. Mas isso é fodido. Como é fodido por um instante olharmos o Reischtag e vermos para além dele; e sabermos que quem incendiou o Reischtag nesse dia distante de Fevereiro de 1933 era feito da mesma matéria de que somos feitos – e que isso, num certo sentido, nos faz cúmplices do crime da intolerância e da infâmia. Como é fodido, atravessando porta atrás de porta atrás de porta num parque gigantesco, por entre as árvores, por um instante suspeitarmos que a nossa vida tantas vezes se reduz a isso mesmo, diariamente, caminhando em fila ordenada, porta atrás de porta, deambulando pelas ruas desenhadas num mapa de que perdemos a chave.

Por isso a arte que nos interessa, a que estamos disponíveis para aceitar e tolerar, a que não nos interroga, a que não nos confronta com os nossos fantasmas e com a nossa aflição, é a das flores de laranjeira pintadas a óleo sobre tela, ou a das naturezas mortas com frutos, ou, dum modo geral, a arte decorativa que nos deixa de bem com o mundo e com a cor da carpete da sala de estar.

Christo e Jeanne-Claude mais não procuram que dar-nos a possibilidade de um outro olhar. De olhar de novo. E isso não estamos disponíveis para aceitar.


[A ver, sobre o projecto (via Luís Ene)]

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Uma crónica desportiva, para variar


Franziska Van Almsick, preparando-se para uma prova de natação nos mundiais

Sim, gosto muito de desporto. Mas não compreendo as regras. Irrita-me que as regras sejam aplicadas como se estivéssemos na idade da pedra lascada. Ainda recentemente, em La Romareda, Ronaldinho Gaúcho faz uma jogada genial e passa a Eto’o que passa a Giuly que remata para o golo. Parecia dança clássica. Arte pura. Pois os gaioleiros do Saragoça começaram a disparatar a propósito dum putativo fora de jogo e outras minudências do género, como se o árbitro e o livro de códigos da FIFA fossem mais importantes que uma dança do Ronaldinho.

Geralmente não fixo o resultado dum jogo. Não me interessa. Porque me parece medieval esta ideia de que a equipa vencedora é a que marca mais golos – como se o importante não fosse a arte dos jogadores, a elegância com que fintam o adversário, o modo como fazem um passe na diagonal. Claro que não recordo o resultado do jogo do Brasil com a Argentina nos oitavos de final do mundial de 1990: mas não posso esquecer o bailado de Maradona nem o modo como ofereceu o golo a Cannigia. Sim, isso interessa-me. Muito mais, confesso, do que saber se é verdade ou não que o massagista argentino andava muito afeito junto dos brasileiros a dar-lhes de beber da água onde macerara e diluira um Rohypnol, deixando apática a defesa canarinha e subvertendo assim a verdade desportiva. A meu ver, a verdade desportiva daquele jogo foi o Maradona ser um génio e ter jogado como se dançasse sem tocar o chão.

Agora, por exemplo, anda tudo muito preocupado porque parece que os atletas do meio fundo se metem na desoxi-metiltestosterona. Ora eu estou-me positivamente cagando para a desoxi-metiltestosterona, para a tetrahidrogestrinona e para o Rohypnol: porque podem dar mais velocidade aos atletas, ou atarantar o adversário – mas isso é o menos se o que estiver em jogo for – como deve ser – não tanto o número de golos que se marcam, não tanto os segundos que um cronómetro regista desde o tiro de partida até à meta desenhada no chão – e sim a elegância, a poesia, o equilíbrio, a estética do movimento. O que são os sete minutos e tal a que a Rosa Mota deixou a desgraçada da Soya Ivanova, nos mundiais de 1987, comparados com o modo como ela deslizava naquela tarde muito quente a confundir as aves suspensas dos fios eléctricos das avenidas de Roma?

Citius, altius, fortius – ora aí está um lema interessante no paleolítico, em que um artista privilegiava correr mais depressa do que uma fera esfaimada ou saltar mais alto, agarrando-se ao ramo duma araucária, do que o carnívero que o perseguia com os incisivos afiados; ora aí está um lema que tem tanto a ver com o desporto como a punheta adolescente (automática, esgalhada à pressa para suprir o impulso da hormona do acne) tem a ver com a suprema Arte da laustríbia.

A Franziska Van Almsick, por exemplo: já a viram nadar? Já repararam bem no modo como um dos braços se ergue numa aparição simultânea à muito vagarosa rotação da cabeça e todo o corpo, num mesmo impulso, respira debaixo da água? Oh, sim, é verdade que a mocinha bateu sucessivos recordes mundiais. Mas quando ela nada (quando ela tudo, meu deus...) algum dos leitores achará que a nossa preocupação de pessoas civilizadas deverá ser a de saber em quantos segundos faz duas piscinas?

domingo, fevereiro 13, 2005

Esse lume

Nunca compreenderás. Era-me insuportável representar o papel da menina do coro. Eu queria era ser a tua puta. A puta que apalpasses nos restaurantes. A puta a quem mandasses bocas foleiras. A puta onde te viesses aos berros a dizer «oh minha granda filha da puta». Às vezes, quando adormecias depois de fazermos amor, eu saía da cama, abria a portada e ficava na varanda a olhar a noite, a olhar o céu, até que uma estrela cadente poisasse nas minhas mãos ainda indecisas. Depois, com esse lume nos dedos, regressava à cama. E só então me vinha. Enquanto dormias. Sem que a luz dos cometas, incendiando as paredes do quarto, te pudesse sobressaltar. Como se fosse obrigada a ser a puta de mim mesma.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

A seda

«Abraçou-me e levou-me por um corredor com um cheiro penetrante. A minha cabeça repousava na anca de Galina; a anca movia-se e respirava. (...) Com sapatos vermelhos caminhou até às janelas para pendurar as cortinas chinesas de um extravagante bastidor. As mãos dela mergulhavam na seda, uma trança movia-se-lhe na anca; eu observava-a arrebatado.

Eu, menino culto, olhava-a como se olha um longínquo cenário iluminado por muitos focos. Imaginei que pertencia à milícia judia e que, como Mírion, usava botas amarradas com cordas. Tenho uma espingarda inutilizável, pendurada ao ombro com um cordão verde, estou ajoelhado perante um velho fosso e disparo contra os assassinos. Atrás do fosso existe um lajedo com pilhas de carvão coberto de pó, a velha espingarda dispara mal, os assassinos de barbas e dentaduras brancas avançam; tenho a orgulhosa sensação de uma morte próxima, e no alto, no azul do mundo, avisto Galina. Vejo uma seteira na parede de um gigantesco edifício, construído com milhares de azulejos. Esta casa avermelhada esmaga a ruela de terra cinzenta mal batida; na seteira superior está Galina. Sorri com o seu sorriso depreciativo da sua janela inacessível; o marido, um oficial meio-vestido, está nas costas dela e beija-lhe o colo...

Imaginei tudo isto enquanto tentava conter os soluços, para amar a Rubtsova com mais amargura, paixão e desespero, e talvez porque a medida da aflição é demasiada para um homem de dez anos.»


[Isaac Babel, in Contos de Odessa. Editorial Inova, Porto, 1972. Selecção e tradução de Egito Gonçalves.]

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Os primeiros nomes

Despias-te sempre tão devagar. Eu tocava a medo a tua pele. Só isso recordo. A lentidão dos gestos, o tempo a suspender-se numa labareda efémera, uma palavra que não me será dado repetir. Sim, lá fora, muito branca, a luz derramava-se no cimento dos terraços. Mas o mundo começava quando me chamavas e cerravas as gelosias do quarto. Para que a sombra trouxesse de muito longe as nascentes da água, o clamor subterrâneo dos seus veios imperecíveis. Eu tocava a medo a tua pele. Como se aprendesse a respirar. Como se o lume, finalmente, pudesse ter um nome. E isso nos protegesse do inverno, da noite, do medo, do rumor da tempestade.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Agora

Que não dissesses uma palavra. Que ficasses só a olhar-me. Em silêncio. Enquanto me toco como se me tocasses. Sabendo que o lume, este vagaroso lume que se expande nos meus dedos, esta ténue deflagração do desejo, é um lume que vem de ti, dos teus nomes, dos teus modos de dizeres o meu nome. Que me visses assim, que me viesses assim, crescendo para mim mesma, até que o silêncio substituísse todas as frases, todos os livros, todas as formas de linguagem. Que ficasses só a olhar-me. Em silêncio. E que esse silêncio te fizesse cúmplice dos meus medos, da minha sede, das minhas sombras. Agora. Uma última vez.

As tuas mãos

Mais que as tuas mãos: quero no meu corpo a memória dos teus nomes.

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Ver nascer um Ídolo

A Kátia é irmã do Cristiano Ronaldo. A Kátia vai lançar um CD. A Kátia, não contente com o fabuloso nome de baptismo, escolheu um nome artístico mais adequado à dilatação da mensagem. Escolheu bem. A mocinha vai longe. Agora chama-se Ronalda. Ronalda: é assim que o seu nome vai aparecer na capa do CD.

A Kátia (perdão: a Ronalda) acha que «desde que sejamos humildes, as coisas correm bem». Acha bem. Ela sabe que o povo português se derrete com os humildes. Ela sabe que a humildade lhe desculpará toda a falta de talento. O bom povo português estará sempre disponível para protegê-la do mundo. Sobretudo se ela, acrescidamente, se confessar frágil, se mostrar desprotegida. Ela sabe. Por isso acrescenta, antecipativa: «Sou assumidamente romântica». Também lá está, na cartilha: Ronalda deve sempre asseverar que acredita no amor, que se deixa levar pelos seus sentimentos puros. É meio caminho andado.

Depois, Ronalda deve ter um projecto. O projecto está para a música pimba como o grupo de trabalho está para o futebol do empata. Uma equipa acaba de levar três batatas. Um jogador com o cabelo comprido e depois apanhado por um elástico da Nike, chamado a comentar a partida, garante: «o grupo de trabalho está unido, e isso é o mais importante». Os adeptos desculpam, compreendem: o importante é que o grupo de trabalho se mantenha coeso em redor do projecto. Por isso mesmo, ternurenta, Ronalda garante: «Adoro cantar e entreguei-me de corpo e alma a este projecto». A mocinha vai longe. Um destes dias, num dos programas televisivos da manhã, o Goucha, ou a Fátima Lopes, dirão: «Ronalda: vê-se que você se entregou de corpo e alma a este projecto». O bom povo português não disfarçará uma lágrima a correr pelo canto do olho. O bom povo português adora as mocinhas humildes e românticas que se entregam de corpo e alma a um projecto.

Agora só é preciso que as letras sejam verdadeiramente execráveis. Essa é a última chave do sucesso. Convém que as músicas de Ronalda falem (a gramática coxeante) da traição que se perdoa, da mentira que se desculpa, da deslealdade que se absolve em nome do amor. Pela amostra (cf. entrevista ao suplemento Vidas, do Correio da Manhã), também por aí haveremos de estar descansados. Eis:

«Mentiroso tens outra mas tu negas
e como fui tão cega em ti acreditar
vais dizer a verdade e tens que ter coragem
para me enfrentar.»

Ou:

«Parte de mim já te esqueceu
mas sou ainda tua
sei que para ti o amor morreu
mas para mim continua.»

Ou ainda:

«Estou só e perdida
mas pronta para te amar
estou só e perdida
mas quero-te outra vez
e mesmo traída
estou pronta para te ver.»

Esta Ronalda promete. O panorama artístico português vai de vento em popa. E saber-se que há ainda quem fale mal, quem não acredite, quem não vislumbre. Foda-se, já é cisma...

domingo, fevereiro 06, 2005

Duas anedotas para subir um bocadinho o nível

São duas anedotas batidas, sim, daquelas antigas, com longas barbas. Mas ficava-nos mal não trazê-las à Seita de Fénix para as duas ou três pessoas que não as conhecem ainda. Aí vai:

PRIMEIRA

Pergunta um:

- Ouve lá, gostas mais da foda ou da punheta?

O outro hesita, encolhe-se, parece indeciso. Finalmente responde:

- Talvez da foda.

- E então porquê?

- Olha, sei lá... Sempre se combibe...

SEGUNDA

Em viagem de negócios ao Porto, o alentejano olha o letreiro pendurado à porta do bar e fica logo de pé atrás. Lê: «Sandes de queijo, um euro. Sandes de fiambre, um euro. Punhetas, dois euros».

Entra, e vê três marmanjas atrás do balcão. Muito devagar, desconfiado, olhando em redor (não sabe que o termo «punheta», no Norte, designa também uma salada de bacalhau...), aproxima-se duma delas, da loiraça, e pergunta:

- A menina desculpe: é você que faz as punhetas?

Ela responde que sim. E ele, baixando a voz, nervoso, quase silabando:

- Então eu pedia-lhe o obséquio de lavar muito bem as mãozinhas e que depois me fizesse uma sandes de queijo...

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

A puta da casa da señora Sánchez

Jorge Luis Borges glosa com frequência o tema do traidor e do herói. O caso de Fergus Kilpatrick (in Ficções) é elucidativo deste baralhar e dar de novo, deste jogo de espelhos poliédricos: em boa verdade, Kilpatrick só é um verdadeiro herói porque foi obrigado a desempenhar o seu papel de traidor: desempenhou-o com heroísmo; isso o redimiu.

A trama de O Cônsul Honorário, de Graham Greene, não tem outro fim que o de nos mostrar como o heroísmo pode encontrar-se onde menos se espera, e como nunca sabemos que face escolher da multiplicidade de rostos escondidos num único rosto. O médico, o professor de inglês, os revolucionários, o romancista, o cônsul honorário (que chegou a ser confundido com o embaixador americano) não passam duns gaioleiros decrépitos a glosar o tema do traidor e do herói.

Clara é a única personagem digna: Clara, a puta da casa de putas, que em nome do amor se entrega a quem a magoa, a quem a desrespeita, a quem a humilha, a quem a maltrata (Eduardo Plarr); e que, mais tarde, em nome da gratidão, se recusa a abandonar quem já nada mais pode ambicionar do mundo e de si mesmo do que o imenso vazio de que somos feitos.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Categorias

Há uma estranha contiguidade em tudo isto: reiteram um ostensivo desprezo pela punheta e pela paneleiragem; penduram na parede os calendários das empresas de camionagem de longo curso ou das lojas de rebites com a fotografia de avantajadas boazonas em pelota; e dizem, de quarto em quarto de hora, palitando o dente: «stander»; «controlar uma rotunda»; «o problema é do celindro».

terça-feira, fevereiro 01, 2005

O tempo

Às vezes interrogávamo-nos se era o tempo que passava por nós
ou se pelo contrário éramos nós que passávamos pelo tempo.
Como se os automóveis que paravam nos semáforos
e depois arrancavam a grande velocidade
deixando atrás de si as nuvens de fumo que ficavam agarradas às paredes dos prédios
fossem os mesmos automóveis que um dia pararam nos semáforos
e depois arrancaram a grande velocidade
deixando atrás de si as nuvens de fumo que ficavam agarradas às paredes dos prédios.
Como se as folhas do Outono espalhadas no chão das alamedas
fossem as folhas de um Outono antigo
que já tinham caído no chão das alamedas
num Outono mais antigo ainda.

Hoje sabemos apenas que nenhum milagre se repete
depois de rasgarmos os Selos
e que o desejo estilhaça a espiral abstracta da idade.